19 de mai. de 2010

O último café da manhã

O despertador tocou as 7:20 horas, como dias atrás.

A única obrigação daquele rapaz era aquela, mais nenhuma. Nas semanas atrás e naquele momento não havia emprego, estudos, tão pouco obrigações, pelo contrário. Seus dias eram cada vez mais diferentes, longos e até certo ponto, inexplicáveis.

Mas ele tinha aquela única obrigação matinal, o que não era nenhum martírio. E tinha total noção, sem mostrar nenhum rancor ou alívio, que aquele seria seu último dia.

Se levantou rapidamente, tomou uma ducha rápida, colocou uma roupa descente e arrumou sua cama. Olhou pela janela do seu quarto e viu, lá de cima do sobrado a linha de trem que ligava a pequena cidade de Liederbach a grande metrópole Frankfurt junto com a imensidão daqueles campos de diversas plantações. O dia estava cinzento e ameno novamente. Em outros dias atrás ele acharia que estaria um frio ímpar, mas se acostumou rápido com aquele ambiente.

Foi direto à cozinha. A mesma estava impecavelmente arrumada. Tudo no seu devido lugar, com um papel de parede de flores amarelas, todos os utensílios de cozinha arrumados e o aroma de limpeza era absurdamente nítida. A chaleira começava a assobiar e imediatamente o rapaz se sentou a mesa com variedades mil para se tomar um café da manhã, mas tudo coisa simples. A riqueza de detalhes em uma simples mesa era fascinante. E mais fascinante ainda era o calendário com os meses de Abril e Maio na outra parede com todos os afazeres anotados metodicamente.

As observações do rapaz foram interrompidas pelo senhor alemão entrando pela porta da cozinha. O nome dele era Heinz. Tinha exatos 92 anos e uma lucidez e vitalidade alucinantes. Herr Heinz era tão ativo que sua destreza em servir a água quente no café do rapaz era igual de um homem de meia-idade.

O rapaz adorava tudo aquilo. Dificilmente alguém lhe servira café nos últimos tempos, alem da rotina paulistana que habitava seu dia-a-dia. Mas o café, os pães alemães e os diversos queijos que estavam na mesa eram mero detalhe para ele. A conversa de Herr Heinz era muito mais interessante do que tudo aquilo, dependendo, mais interessante do que o resto do dia.

O diálogo entre os dois era interessante. Uma mistura dos idiomas inglês e alemão, além de mímicas e adivinhações. Mas nada, absolutamente nada ficava sem ser entendido. Tudo era compreendido podendo demorar minutos para entendimento de apenas uma única palavra que dava sentido a conversa toda. Tudo era feito de forma paciente e com vontade de ouvir e falar de ambos.

Nas manhãs anteriores, Herr Heinz contou histórias mais do que interessantes. Havia contato seus negócios com os turcos e os italianos no bairro de Höchst, a construção de sua casa, os empregados croatas e poloneses ilegais que tinha nos tempos da guerra fria, a morte de seu irmão ao seu lado e seus projetos de engenharia e esconderijos suspeitos na Segunda Guerra Mundial e até sua curta carreira de jogador de Futebol na década de 30.

Mas naquela última manhã a história era diferente. Herr Heinz tomava ar para começar a falar e pausava. Através da janela olhava para o horizonte, pensativo. Tomava ar de novo e parava novamente, como se estivesse prestes a se arrepender do que fosse contar ou pronto á fazer uma confissão. O rapaz mal conseguia tomar seu café de tamanha apreensão e quase deixou derramar a xícara de café observando Herr Heinz de costas á ele, de frente a janela e fogão e olhando a paisagem cinzenta que acalentava aquela manhã.

Herr Heinz, em alemão e sem se importar se o rapaz fosse entender ou não, começou a falar da vida, propriamente dita. O rapaz ficou mais curioso ainda, afinal, um homem de 92 anos sabia como pouquíssimos o significado da mesma. Dizia que nada daquilo tinha mais valor à ele, apontando pela janela para um pequeno prédio que lhe pertencia. Dizia que seu único filho e suas netas não lhe davam atenção suficientes devido as suas atitudes azedas com eles em seus tempos de altivez e jovialidade. Dizia que se importava menos com o sol nascente, com a noite estrelada, com um sorriso de uma criança e com seu passado nebuloso e glorioso. Dizia, com uma lágrima escorrendo sua pele branca e envelhecida, que jamais alguém quis conversar com ele nos últimos 10 anos e segundo ele mesmo disse, com razão. Disse, com a voz trêmula, que aprendeu a ouvir as pessoas graças ao rapaz e aprendeu a falar menos, apenas o necessário, salvo alguma boa conversa. Disse que se tivesse aprendido isso há 50 anos atrás talvez tivesse mais amigos, mais gente ao seu redor e sua família não olhasse para ele com tanto rancor. E disse em voz lenta num bom alemão que até o jovem conseguiu compreender, que ele era o único amigo que talvez entendera toda a sua história, com o coração aberto e limpo, sem rancor ou preconceito, apenas adorando o ato de ouvir. Disse que talvez pudesse morrer em paz.

Naquele instante, o rapaz ficou petrificado. O café não descia mais e o pão ficou imóvel no prato. Seus olhos desciam pelas paredes procurando algum raciocínio, olhando alguma esperança nas palavras que acabara de ouvir e tentando entender tudo aquilo. O máximo que ele conseguiu falar foi um "Vielle Danke" olhando nos olhos de Herr Heinz, sem piscar, reagir ou fazer algum movimento brusco. O rapaz ainda tentou falar algo mais, mas nada saiu. As palavras simplesmente ficaram na mente e ele engasgava tentando emiti-las.

Aquele tinha sido o último café da manhã juntos. Dois dias depois o rapaz voltou á sua terra. Durante a viagem no avião ele lembrava de tudo que tinha passado nesses meses fora de seu país, nas conversas com pessoas de diferentes regiões, sotaques e costumes.

Mas a conversa que mais vinha a cabeça dele era, sem dúvida, o último café da manhã com Herr Heinz.

Após duas semanas em sua terra, o rapaz recebe um e-mail de seu parente vivendo no outro lado do oceano dizendo que Herr Heinz havia sido internado com infecção generalizada e que dificilmente conseguiria escapar da morte.

Na semana seguinte ele recebeu outro e-mail do mesmo parente avisando que Herr Heinz havia falecido, que os médicos haviam feito de tudo para tentar salva-lo, mas seu estado era deveras grave,

Naquele momento o rapaz entendeu aquela conversa no último café da manhã com Herr Heinz. Os olhos dele estavam marejados, uma parte pelo sentimento que havia pego de Herr Heinz, mas a maior parte era pela inestimável lição de vida que infelizmente só foi aprender com a morte de uma pessoa.

Em seguida ele limpou seus olhos, desligou seu computador, deu um abraço em sua mãe e foi conversar com seus irmãos sobre o cotidiano da vida.


Ele queria ouvir tudo e todos.