21 de nov. de 2009

Pequena Missão

O sol brilhava como nunca naquela manhã de Sábado e ele tentou não ouvir o despertador tocar.

Tilintava como nunca. Seu barulho, por mais fraco que fosse, parecia um carnaval em seus tímpanos. Ele tentando ignorar.

Mas não podia. Tinha outra missão a cumprir.

Acordou sozinho, de novo. De novo ninguém ao seu lado. A quanto tempo estava nessa situação? Três? Quatro anos? O tempo passou para ele, um simples homem de meia-idade sem deixar vestígios de um casamento anterior quase perfeito.

Quase perfeito.

Assim era sua vida.

Era assim que ele pensava na vida enquanto fazia, novamente, seu café preto sem graça, com o mesmo pão e margarina sem graça que dava "Bom dia" á ele todas as manhãs.

Perambulava com o pão na mão pelo quarto bagunçado, desarrumado, ar carregado de cigarro e escuro. Não mastigava direito e procurava seu uniforme de trabalho. Não se importava com tudo aquilo ao seu redor. Sua vida havia perdido o sentido depois do acidente, depois daquilo.

Aquilo, o motivo da sua missão. O motivo do seu divórcio.

O motivo da sua eterna tristeza.

Após engolir o pão mal-feito, deu um gole enorme em seu café e foi direto ao banheiro. Já se sentia acordado por completo. Começou a verificar seu uniforme. Tudo checado, desde a fantasia, até a peruca e maquiagem. Antes de começar a se vestir, olhou para o porta-retratos e viu a foto dele.

Lembranças vieram á sua mente. Anos de felicidade pura destruídos pelo acidente que mudara a sua vida e do seu casamento por completo.

Não existia coisa mais linda. Ele era tudo. Sua vida, seu caminho, seu amor. Não se conformava com sua perda trágica. Seu casamento nao suportou o baque e o divórcio foi o melhor caminho. Ainda conseguia ouvir os gritos da sua ex-esposa chorando pelos cantos da sua antiga enorme casa.

Depois dessa perda, a depressão tomou conta dele. Perguntou a Deus o porquê de tudo isso em suas rezas ao pé da cama e tentou achar o caminho na Fé, mas sem sucesso. O homem engravatado e com microfone bem que tentou, mas nao havia mais nada o que lhe tirar. Em seguida achou conforto no fundo das garrafas de bebida que o acompanhavam nas noites boêmias dessa selva de pedra. O conforto era passageiro, momentâneo, mas a depressão voltava rapidamente. Essas garrafas lhe tiraram seus últimos tostões, fazendo com que ele vivesse nesse pequeno apartamento, no seu pequeno emprego com essa sua pequena vida e sem ninguém.

E o pior de tudo, o tempo não voltava atrás. Sabia que nao tinha volta. Um amigo chegou a lhe oferecer um jeito de apagar a memória. Precisava apenas espetar a seringa em uma das veias do seu braço e ele quase fez isso.

Quase.

E quase estava perdendo a hora. Saiu do seu flashback mental, tomou uma ducha, escovou os dentes rapidamente e começou a se vestir. Seu rosto amassado pela rotina e cansado pela sua dupla jornada de trabalho dava lugar a maquiagem. Branco, azul e vermelho cobriam todo seu rosto. Seu corpo estava todo extravagante com aquela roupa e até uma peruca loira ele colocara. Olhou o relógio e viu que tinha meia-hora para chegar ao local. Pegou seu par de sapatos enormes, o endereço anotado, o molho de chave e saiu do seu apartamento.

Entrou no seu carro rapidamente. Seria ridículo se alguem o visse assim. O único luxo que seu carro tinha era um vidro escuro. Odiava chamar atenção, apesar do seu tabalho.

Durante o caminho a imagem da pessoa que ele havia perdido no porta-retratos não sumia de sua cabeça. Estava preocupado com horário. Não podia chegar atrasado. Nunca chegou atrasado e não seria naquele dia.

Ao chegar no seu destino, viu um homem lhe esperando. O mesmo pediu para que ele fizesse silêncio e entrasse na porta dos fundos. Após entrar, tirou seu tênis e colocou seu sapatos enormes. Era um dia maravilhoso mesmo. O Sol despontava como nunca. Nem parecia que era Outono e já se podia ouvir as vozes no fundo, gritando, fazendo algazarra.

Aquilo era a única coisa que preenchia seu coração.

Antes dele se mostrar, o dono da casa o segurou levemente no ombro e perguntou se não estava esquecendo de nada.

Claro, como poderia. Ele colocou a mão no bolso de sua roupa extravagente e tirou uma bola vermelha, não muito grande e colocou em seu nariz.

Em seguida entrou no quintal e viu todas aquelas crianças brincando, gritando, correndo e se divertindo. Todas estavam esperando por ele. Aquele momento era único, inigualável e sabia que todas aquelas crianças, sem exceção, lembrariam daquilo pro resto de suas vidas, sejam em sonhos infantis ou relances mentais na maturidade. Todas as crianças o cercavam, puxavam sua longa roupa, pisavam no seu enorme pé falso e riam como nunca de sua aparência. Ele deu uma leve olhada para trás e viu o dono da casa parado, encostado na porta apenas com um leve sorriso, mas com uma alegria interna indescritível.

Ele sabia quem era a aniversariante e foi em direção dela. Viu uma menina contente, alegre e extremamente sorridente. Desejou feliz aniversário da forma mais engraçada possível, com um largo sorriso em seu rosto e fez, na hora, um cavalo com os balões que ele tinha em mãos.

Mas o que mais chamou a atenção dele não foi o pai da menina ou a aniversariante em si. Foi um menino na festa, correndo, contente e parou em sua frente. O menino aparentava ter 7 anos e era magro, cabelos pretos lisos, pele branca-alva, um sorriso ímpar e profundos olhos pretos.

Como os seus.

Olhos pretos e sorriso inesquecível como a foto da criança que estava no porta-retrato do seu quarto, impossível de esquecer, como a felicidade que teve em sua companhia e a dor que teve com sua perda, após o acidente.

Seu coração apertou, seu estômago queimou e suas pernas tremeram. Recobrou os sentidos do corpo e vendo aquele rosto parecido e a felicidade infantil cercando todo aquele ambiente, não podia deixar de cumprir sua missão, tão simplista e pequena para humanidade, mas tão valiosa e enorme para seu ser.

Naquele momento, a alegria voltou ao seu coração.

Sua missão estava sendo cumprida novamente e levemente sua realidade mudou.

Levemente voltou o sentido de sua vida.